quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

OS INCÊNDIOS FLORESTAIS E A QUALIDADE DA ÁGUA

*Instituto Superior de Agronomia, Universidade de Lisboa

Referência bibliográfica:
Meneses, B.M. (2013) - Os incêndios florestais e a qualidade da água. Livro de Resumos do VIII Congresso Ibérico de Gestão e Planeamento da Água, Lisboa, p. 95. http://8cigpa.lis.ulusiada.pt/

Resumo
Os incêndios florestais são responsáveis por grandes problemas ambientais, desde a emissão de enormes quantidades de poluentes para a atmosfera, como na alteração da qualidade da água, devido ao arrastamento pela água de escorrência superficial de determinados elementos químicos das áreas ardidas para os cursos de água. Nesta comunicação apresenta-se a avaliação das alterações da qualidade da água da Ribeira de São Domingos (Região Oeste de Portugal), após ter recebido água que escorreu superficialmente de uma área ardida no Planalto de Cezaredas. Os resultados obtidos indicam haver input de nutrientes na água, mas em reduzidas concentrações, não pondo em causa a saúde do Homem caso haja consumo das mesmas. De todos os elementos químicos avaliados (Ca, Mg, K e Na), destaca-se o Ca com as maiores concentrações, devendo-se também à maior disponibilidade natural do mesmo na área em estudo.

Palavras chave: Água, Incêndios Florestais, Precipitação, Escorrência Superficial, Nutrientes.


1. Os incêndios florestais e a qualidade da água

Os efeitos causados pelos incêndios florestais na qualidade da água têm sido pouco estudados pela comunidade científica e desvalorizados no geral, sobretudo porque os efeitos não se manifestam imediatamente após a ocorrência destes eventos.
A alteração da qualidade da água evidencia-se quando ocorre a primeira precipitação capaz de gerar escorrência superficial em vertentes ardidas, da qual resulta o transporte de elementos químicos até aos cursos de água, causando problemas a jusante (Landsburg e Tiedemann, 2000; Alexander et al., 2004; Sheridan et al., 2004; Angeler e Moreno, 2006; Smith et al., 2011). Estes devem-se sobretudo à alteração do pH e aumento do teor de nutrientes nas águas dos canais de drenagem que receberam água das áreas ardidas (Meneses, 2013), refletindo-se estes aumentos na perturbação do biota ou no bem-estar do Homem, se estas águas forem consumidas sem tratamento prévio.
Portugal Continental apresenta as condições ideais para a ocorrência de incêndios florestais, por um lado devido ao clima (período chuvoso durante o Inverno e Primavera que permite o desenvolvimento da vegetação, e quente durante o Verão o que proporciona a redução da humidade, condição ideal para a ocorrência de incêndios florestais) (Meneses e Sarmento, 2012), por outro devido ao tipo de material ou combustível presente nas florestas deste território (e.g. espécies resinosas, eucaliptos, entre outros). Neste território os incêndios florestais são um dos fenómenos com maior impacto ambiental, desde a emissão de poluentes para a atmosfera, mas também pela acentuação de processos hidrológicos e erosivos (Shakesby et al., 1996; Meneses, 2011), refletindo-se estes últimos na perda de qualidade da água, pela conetividade existente entre os processos que ocorrem nas vertentes ardidas e os cursos de água a jusante (Ferreira et al., 2010).

2. Metodologia

Para a avaliação da migração de elementos químicos de áreas ardidas para as águas de rios e ribeiras selecionou-se o Planalto de Cezaredas (localizado na Região Oeste de Portugal) onde ocorreu um incêndio florestal recentemente. Esta área ardida é drenada diretamente para a Ribeira de São Domingos que vai desaguar no Rio de São Domingos, desaguando este último curso de água na Barragem de São Domingos. Esta migração ou arrastamento de elementos químicos ocorre sobretudo quando se proporciona escorrência superficial nas vertentes ardidas, sendo importante neste desencadeamento a quantidade de precipitação que cai sobre as mesmas.
Assim, monitorizou-se a ocorrência de precipitação junto às áreas ardidas e, selecionou-se dois locais de amostragem na Ribeira de São Domingos entre estas áreas, localizando-se um a montante da área ardida (água de referência) e o outro a jusante (imediatamente após a área ardida). Em cada local fez-se a colheita de quatro amostras de água após os episódios de maior precipitação que ocorreram depois da extinção do incêndio. Estas foram, posteriormente, analisadas em laboratório, onde se determinou a concentração das bases de troca (Ca, Mg, K e Na), pH e teor de sais.

2.1. Área de estudo

A área de estudo localiza-se no norte da área administrativa do Concelho da Lourinhã e compreende a área ardida resultante do incêndio florestal que ocorreu no Planalto de Cezaredas (Fig. 1), a 19 de julho de 2012.
Esta área ardida interseta várias linhas de água temporárias (sazonais) e, também, a Ribeira de São Domingos. Devido ao relevo deste planalto, uma parte da área ardida (28,87ha) é drenada para W, através de linhas de água temporárias que desaguam na Ribeira de São Domingos, muito próximo da localidade de Pena Seca; a restante área ardida (19,29ha) é drenada diretamente para esta ribeira, sendo as vertentes afetadas (a norte da ribeira), caraterizadas pelo fraco declive nas áreas de maior altitude e declives mais acentuados (>35 graus) para jusante, com alguns “socalcos” no setor intermédio. De destacar ainda a presença de pequenos terraços fluviais no fundo de vale.


Figura 1 - Enquadramento geográfico da área de estudo, com representação da área ardida e locais selecionados para a colheita de amostras de água.

Na área ardida predominam os solos litólicos (não húmicos e pouco insaturados). Estes eram ocupados, essencialmente, por floresta de carrasco e eucaliptos, com alguns pinheiros mansos e bravos, carvalhos, sobreiros e medronheiros. Existiam ainda algumas áreas ocupadas por vegetação arbustiva (giestas, tojo, silvas, entre outros), nomeadamente, junto à Ribeira de São Domingos.
Quanto ao clima, a área de estudo encontra-se na transição da região de clima marítimo litoral oeste (amplitude térmica muito atenuada, com frequência de nevoeiros de advecção durante as manhãs de verão) para a região de clima marítimo de fachada atlântica (verão moderado com o máximo médio do mês mais quente entre 23º a 29ºC e inverno moderado com o mínimo médio do mês mais frio entre 4º a 6ºC).
Em função da localização da área ardida, definiu-se os locais de amostragem na Ribeira de São Domingos, sendo um a montante (água de referência) e outro a jusante (pontos A e B na Figura 1, respetivamente).

2.2. A precipitação

Após a ocorrência do incêndio florestal no Planalto de Cezaredas, monitorizou-se através do website do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) a precipitação diária nas estações meteorológicas em funcionamento mais próximas à área ardida (Areia Branca, Baleal, Barragem de Magos, Rego da Murta, Sobral da Abelheira e São Julião do Tojal), para se efetuar as colheitas de amostras de água na Ribeira de São Domingos. O primeiro episódio pluvioso que se destaca com precipitação média diária acima de 10mm ocorreu a 25-09-2012, com o máximo de 12,23mm nas estações meteorológicas consideradas (Fig. 2), colhendo-se as primeiras amostras de água a 27-09-2012. O segundo episódio pluvioso com elevada precipitação (23,53mm de precipitação média diária) ocorreu a 18-10-2012 e colheram-se as amostras a 19-10-2012. Após este episódio sucederam-se vários episódios de precipitação, colhendo-se as terceiras amostras de água a 01-12-2012 (15,2mm de precipitação média máxima diária máxima no episódio pluvioso antecedente a esta colheita). As últimas amostras de água colheram-se já a 16-01-2013, sendo que no episódio pluvioso antecedente a esta colheita verificou-se a precipitação média diária máxima de 6,44mm.


Figura 2. Variação da precipitação média diária registada entre 19/07/2012 e 17/01/2013 nas estações meteorológicas em funcionamento mais próximas ao Planalto de Cezaredas (Areia Branca, Baleal, Barragem de Magos, Rego da Murta, Sobral da Abelheira e São Julião do Tojal), com representação dos dias selecionados para a colheita de amostras de água.

2.3. Metodologia analítica

A determinação do pH na água, ou medida da atividade dos iões H+, fez-se com recurso ao potenciómetro com elétrodo de vidro combinado. Este foi calibrado com as soluções pH 4 e pH 7 (Póvoas e Barral, 1992), encontrando-se estas à mesma temperatura da água em análise.
A condutividade elétrica é o parâmetro mais utilizado para expressar a concentração de sais solúveis na água, correspondendo à medida da capacidade de um material em conduzir eletricidade (parâmetro oposto da resistividade elétrica), aumentando proporcionalmente à medida que a concentração de sais também aumenta (Holanda et al., 2010). Segundo Póvoas e Barral (1992), a condutividade é a condução da eletricidade por um processo de transferência de massa das soluções de eletrólitos. Para a determinação da concentração de sais solúveis nas águas colhidas, no laboratório recorreu-se ao condutivímetro com compensação automática de temperatura para a respetiva estimativa de sais.
A determinação das bases de troca (Ca, Mg, K e Na) fez-se nas várias amostras de água e nos ensaios em branco. A primeira foi diluída até se obter a sua leitura no espectrofotómetro UV/visível dentro dos limites indicados para cada elemento. Nesta quantificação das bases de troca por espectrofotometria de absorção atómica (Lucas e Sequeira, 1976), utilizou-se um espectrofotómetro da marca Perkin-Elmer, modelo 2380.

3. Variação do pH e teor de sais nas águas colhidas na Ribeira de São Domingos


Nas águas analisadas distinguem as águas colhidas a jusante da área ardida, das águas colhidas a montante pela maior concentração de sais solúveis, conforme se pode observar pelo gráfico da variação da condutividade elétrica (Fig. 3). Estes resultados revelam o arrastamento de sais da área ardida pela água de escorrência superficial. Contudo, verifica-se que a disponibilidade dos sais solúveis, tanto nas áreas ardidas, como nas áreas não afetadas pelo incêndio florestal, vai diminuindo com o passar do tempo (perdas ao longo do período de monitorização em função da precipitação ocorrida), daí as águas da quarta colheita apresentarem os teores de sais mais reduzidos do conjunto.


Figura 3. Variação da condutividade elétrica e pH nas águas colhidas a montante (A) e jusante (B) da área ardida.
 
Quanto ao pH das águas analisadas, verificou-se que este aumentou ao longo do período de monitorização (Fig. 3), com exceção das águas colhidas no segundo momento a jusante da área ardida (coincidente com o período em que ocorreu mais precipitação). Nas águas colhidas no primeiro e terceiro momento destaca-se o pH mais elevado nas águas colhidas a jusante da área ardida, revelando estes resultados a interferência das águas que escorreram das áreas onde ocorreu o incêndio florestal. Entre as águas colhidas no terceiro e quarto momento a jusante da área ardida não se verificou grandes diferenças de pH, mas na água de referência (colhida a montante) verificou-se valores de pH mais elevados, podendo estes resultados ser influenciados pela quantidade de precipitação ocorrida nos períodos pluviosos antecedentes, mas também pela regeneração da vegetação que, de certa forma, condicionou a escorrência superficial que ocorreu nestas áreas queimadas.

4. Nutrientes arrastados pela escorrência superficial da área ardida no Planalto de Cezaredas para a Ribeira de São Domingos

O teor de nutrientes nas águas analisadas também se diferencia entre as águas colhidas a jusante da área ardida, das águas colhidas a montante. A jusante verificou-se sempre concentrações superiores dos elementos químicos analisados (Fig. 4), com exceção do Ca nas águas da primeira colheita. Estes resultados confirmam o arrastamento destes elementos químicos pela água de escorrência superficial da área ardida e o consequente input nas águas da Ribeira de São Domingos, alterando a sua qualidade. Contudo este aumento de teores não é muito acentuado, face ao verificado nas águas a montante, onde não há interferência das águas escoadas das áreas ardidas.


Figura 4. Variação do teor de nutrientes nas águas colhidas a montante (A) e jusante (B) da área ardida.

A maior diferença entre teores de nutrientes verificou-se no K das águas da primeira colheita, revelando os resultados obtidos o fácil arrastamento deste nutriente pelas primeiras águas de escorrência superficial que ocorreu nas áreas ardidas, visto que esta diferença vai reduzindo entre as águas colhidas a montante e jusante desta área com o passar do tempo, até valores muito próximos já no final do período de monitorização.
Quanto ao Mg e Na, as diferenças entre os teores observados nas águas colhidas a montante e a jusante da área ardida são muito idênticas ao longo do período de monitorização. Pelos teores obtidos nestes elementos é bem explícito o input dos mesmos na água da ribeira, em consequência do arrastamento que ocorreu pela água de escorrência superficial das áreas ardidas.
De todos os nutrientes analisados, verificou-se que o Ca é o nutriente que apresenta a maior concentração nas águas colhidas nos dois locais selecionados. Estes resultados podem explicar-se pela maior disponibilidade natural deste elemento nestas áreas essencialmente calcárias.
Também é visível pela análise dos gráficos da Figura 4 a redução da disponibilidade destes elementos químicos nas áreas queimadas e não queimadas ao longo do tempo. De referir ainda que as últimas colheitas realizaram-se após sucessivos eventos pluviosos, o que pode ter causado a diluição destes elementos na água da ribeira em análise (variação do caudal).

4. Considerações finais

Os resultados obtidos revelaram haver alteração da qualidade das águas dos cursos superficiais a jusante da área ardida, em função da migração dos elementos químicos que ocorreu nestas áreas. No geral, verificou-se um aumento das concentrações das bases de troca e sais solúveis nas águas colhidas a jusante das áreas ardidas e, também, alteração do seu pH. Verificou-se que nos primeiros eventos pluviosos ocorreu maior input de nutrientes nas águas, devendo-se nestes casos à maior disponibilidade dos mesmos nas vertentes ardidas, tornando-os mais suscetíveis de serem transportados pelas águas de escorrência superficial. Nas águas das últimas colheitas, observaram-se menores concentrações, devendo-se à menor disponibilidade dos mesmos nestas vertentes e, também, à regeneração da vegetação, que condicionou a escorrência superficial, sobretudo, por favorecer a retenção da água da precipitação, através da infiltração. Os resultados obtidos nesta investigação revelam a importância da avaliação dos impactos causados pelos incêndios florestais na qualidade das águas, alertando para a necessidade de se controlar os parâmetros químicos das mesmas após estes eventos e durante os primeiros episódios de precipitação capazes de gerar escorrência superficial, sobretudo quando estas águas se destinam ao consumo humano.

5. Referências bibliográficas

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